sábado, 4 de maio de 2013

Não tente me proteger da sua vida


Não tente me proteger da sua vida, porque não quero. Tanto faz se são riscos perigosos, prefiro ficar e ver o que vai ser. Escolhi ser quem te estende a mão, escolhi ignorar o medo de sofrer.
                Estou pedindo apenas que faça um esforço em fazer o mesmo por mim. Quando a noite vier e não houver ao menos uma estrela pra clarear a escuridão, seja quem não permite que eu me perca.
                Dias ruins sempre virão, nem mesmo assim deixe-os assustar você.
                Sorria torto, com o olhar suave, não importa se logo em seguida for reclamar da sua mãe, do vento, do cachorro do vizinho...
                Sente-se na calçada no fim do dia, fale de você, dos sonhos que tinha quando era só um menino, você sabe que vou pensar “ainda parece um menino”.
                Não tente me proteger da sua vida, porque não quero. Tanto faz se daqui uns anos seu cabelo vai cair, ou se você vai sempre esquecer de datas importantes.
                Estou pedindo que faça apenas um esforço em fazer o mesmo por mim. 

O Conto das Dezoito Horas - Parte 2


Confusão


                Abri os olhos e a luz do dia os feriu com a surpresa da claridade. Definitivamente não sabia onde estava, o que havia acontecido, aliás... Quem era eu?!
                Ao longe pude ouvir vozes, de repente alguém tocou meu ombro. Dei um sobressalto.
                -Moça, você tá bem? – Ouvi a senhora de estatura baixa, semblante humilde, estava vestindo algo florido que pareceu alegre demais pro meu gosto. Grunhi confusa e ela continuou me olhando, agora como se estivesse com pena. Ela deve ter pensado que eu era alguma drogada que cheirou tanto que caiu por ali mesmo. Não, eu não era! Ou era?! Não, não era!
– Eu não sei, não me lembro muito bem o que aconteceu. – Disse num tom de desespero que não pude ignorar em minha voz.
A senhora me ajudou a levantar. Olhei em volta e aos poucos fui entendendo o lugar. Um pouco à frente de onde eu estava, seguia-se um prédio velho, mas que ainda funcionava. Tratava-se de uma maternidade pública, o lugar parecia estar caindo aos pedaços, a entrada quase não podia ser vista, tamanha a quantidade de mato no lugar. Do lado oposto, seguia-se um muro imenso e branco que parecia alcançar todo o quarteirão, já no fim da rua, pude avistar um portão todo de grades enferrujadas, quase três metros de altura. Lá dentro avistei túmulos deteriorados pelo tempo. Um cemitério. Meu corpo estremeceu tomado por um calafrio que eu não esperava.
– Carece de ter medo não, moça. Povo aí dentro só quer um pouco da paz que nunca tiveram em vida. – Falou a velha. Isso me incomodou. Não estava com medo, não teria medo de uma bobagem dessas.
Seguimos por uma rua quieta, apenas algumas crianças jogavam bola, mas sem grande algazarra. Era fim de tarde, o horizonte já se mostrava vermelho e cinza pelo efeito do crepúsculo. Não sei quanto tempo estive desacordada. Chegamos à entrada de um circo, ela disse:
– Olha menina, aqui todo mundo é gente humilde, mas um prato de comida não há de lhe faltar. – Sorri de volta em resposta. Senti certa comoção com o carinho dessa mulher que sequer me conhecia. Olhando-a novamente, pude perceber que ela era uma cigana.
Fomos até sua barraca. O lugar era mesmo humilde, porém aconchegante e bem arrumado. Havia cinco camas pequenas, uma cama de casal e duas redes montadas, por cima das camas, todas forradas impecavelmente com lençóis vermelhos ou azuis. Um filtro de barro no canto esquerdo, uma mesa velha com um jarro de flores frescas que davam ao lugar um tom alegre. Ela disse que eu poderia dormir em alguma daquelas redes, perguntou se eu não me importava com o jeito pobre e eu disse que não. E agradeci a hospitalidade, estava meio tímida e confusa com toda aquela situação. Não sei de onde tirei aquelas roupas, mas eu estava vestindo um casaco marrom e aparentemente velho, calças jeans com um rasgo na perna e uma mancha de sangue na altura do joelho, mas minha perna não estava ferida. Tinha comigo uma mochila com algumas outras roupas que não sei se são minhas mesmo, um cordão estranho e outro bolso com alguma outra coisa, mas o zíper estava emperrado.
Mais tarde conheci seus filhos, oito garotos e uma menina, a caçula entre todos que, certamente, tinham que se espremer pra viverem ali. Soube depois por um dos meninos, que o pai deles havia morrido há dois anos, não se sabe do quê. Dormiu bem e acordou sem vida ao lado da mãe. Desde então todos ali trabalham pra ajudar no que falta, até a garotinha mais nova. O mais velho dos garotos era um rapaz moreno, estava sempre desfilando de peitos nus, e qualquer garota cega poderia perceber que se tratava de um belo tórax. Apesar da morenice, tinha olhos verdes e cabelos negros e lisos que lhe caiam à altura da nuca.
– Josias. – Ele se apresentou timidamente. Os outros eram Mathias, Gustavo, Geraldo, Luiz, Pablo, Higor, Lucas e Catarina. A senhora que me acolheu se chamava Carmem. Por não me lembrar do meu nome, passaram a me chamar de Nadja.
O pessoal do circo me tratava muito bem sempre. Em especial, Josias. Ele era atirador de facas, trabalhava com isso desde menino. Pra ele, era mais uma brincadeira que um trabalho. A mãe lia a sorte das madames que passavam por ali. O circo só tinha espetáculo as sextas, aos sábados e às terças. Josias e eu conversávamos por horas, às vezes íamos dormir já com o sol nascendo. Gostávamos de ir pra sala de espelhos, ela não era mais aberta ao público por haver vários espelhos quebrados, perdíamos horas ali. Cada vez me sentia mais envolvida por ele. Certa noite ele me chamou pra sala de espelhos. Eu havia decidido dizer que o queria como algo mais que apenas amigo. Conversamos um pouco e não tive coragem. Fomos pra barraca em silêncio, eu estava chateada com meu fracasso e ele não entendia o porquê de eu estar amuada. Todo dia eu sentia vontade de falar, mas na hora, simplesmente desistia. A verdade é que eu sabia que ele me via apenas como uma boa amiga.
Era por volta das cinco e meia da tarde, eu senti uma vontade absurda de vê-lo. Pedi à Catarina que o chamasse e fui espera-lo na sala de espelhos. Ele chegou me olhou e disse que eu estava estranha. De Fato eu me sentia estranha. Josias se aproximou de mim e sem pensar em nada, o beijei. Beijei-o de um jeito selvagem e logo uma vontade e uma raiva insana tomaram conta de mim. Ele tentou me empurrar, mas não conseguiu que eu me soltasse dele. Senti uma dor aguda no peito. O sino da igreja badalou avisando que já eram seis horas. Não sei de onde saiu a fúria dentro de mim, mas empurrei-o com uma força que também me era desconhecida, empurrei Josias contra um dos espelhos que se quebrou imediatamente. Ele caiu meio zonzo. Peguei um dos pedaços do espelho, como que por reflexo, e cravei no peito dele, rasgando seu tórax. E com minhas próprias mãos, arranquei seu coração e simplesmente comi. Comi como se há semanas não comesse mais nada. Ele não teve tempo de ter a menor reação sequer. Seu corpo jazia no chão, o peito aberto como se uma besta o tivesse atacado. E quando me olhei no espelho, foi isso o que vi. Minhas mãos pingavam sangue e do mesmo jeito minha boca, pingavam o sangue do homem que eu acabara de matar de um jeito horrível. E então olhei meus olhos e senti repulsa e medo pelo que vi. Estavam negros como a pior noite no inferno e lampejavam um ódio imenso. Nesse instante me lembrei de tudo. Quem eu era, o cara a quem eu amava dias antes, o quarto imundo onde ele me manteve prisioneira e... E... E o mais difícil de acreditar. O meu assassinato! Sim! Ele havia me matado! Mas como era possível eu ainda estar ali?! Mas não me preocupei muito com isso naquele momento. Lembrei-me de D. Carmem, de como ela havia sido boa comigo e de como eu acabara de retribuir, matando o filho dela de um jeito covarde e brutal. Olhei pra o que tinha acabado de fazer e sai correndo. Fugi o mais rápido que pude. Fui à barraca onde havia morado nos últimos dias, estava vazia. Naquele horário todos iam pras avenidas vender seus trabalhos artesanais. Peguei minhas coisas e fugi. Desci a ladeira da rua, já estava quase completamente escuro da noite que começava a surgir e não havia ninguém por ali. Entrei na floresta e corri. Não sabia aonde ir, mas já havia me lembrado de tudo o que tinha acontecido. Precisava fazer alguma coisa!