Confusão
Abri os olhos e a luz do dia os
feriu com a surpresa da claridade. Definitivamente não sabia onde estava, o que
havia acontecido, aliás... Quem era eu?!
Ao longe pude ouvir vozes, de
repente alguém tocou meu ombro. Dei um sobressalto.
-Moça, você tá bem? – Ouvi a
senhora de estatura baixa, semblante humilde, estava vestindo algo florido que
pareceu alegre demais pro meu gosto. Grunhi confusa e ela continuou me olhando,
agora como se estivesse com pena. Ela deve ter pensado que eu era alguma
drogada que cheirou tanto que caiu por ali mesmo. Não, eu não era! Ou era?!
Não, não era!
–
Eu não sei, não me lembro muito bem o que aconteceu. – Disse num tom de desespero
que não pude ignorar em minha voz.
A
senhora me ajudou a levantar. Olhei em volta e aos poucos fui entendendo o
lugar. Um pouco à frente de onde eu estava, seguia-se um prédio velho, mas que
ainda funcionava. Tratava-se de uma maternidade pública, o lugar parecia estar
caindo aos pedaços, a entrada quase não podia ser vista, tamanha a quantidade
de mato no lugar. Do lado oposto, seguia-se um muro imenso e branco que parecia
alcançar todo o quarteirão, já no fim da rua, pude avistar um portão todo de
grades enferrujadas, quase três metros de altura. Lá dentro avistei túmulos
deteriorados pelo tempo. Um cemitério. Meu corpo estremeceu tomado por um
calafrio que eu não esperava.
–
Carece de ter medo não, moça. Povo aí dentro só quer um pouco da paz que nunca
tiveram em vida. – Falou a velha. Isso me incomodou. Não estava com medo, não
teria medo de uma bobagem dessas.
Seguimos
por uma rua quieta, apenas algumas crianças jogavam bola, mas sem grande
algazarra. Era fim de tarde, o horizonte já se mostrava vermelho e cinza pelo
efeito do crepúsculo. Não sei quanto tempo estive desacordada. Chegamos à
entrada de um circo, ela disse:
–
Olha menina, aqui todo mundo é gente humilde, mas um prato de comida não há de
lhe faltar. – Sorri de volta em resposta. Senti certa comoção com o carinho
dessa mulher que sequer me conhecia. Olhando-a novamente, pude perceber que ela
era uma cigana.
Fomos
até sua barraca. O lugar era mesmo humilde, porém aconchegante e bem arrumado. Havia
cinco camas pequenas, uma cama de casal e duas redes montadas, por cima das
camas, todas forradas impecavelmente com lençóis vermelhos ou azuis. Um filtro
de barro no canto esquerdo, uma mesa velha com um jarro de flores frescas que
davam ao lugar um tom alegre. Ela disse que eu poderia dormir em alguma
daquelas redes, perguntou se eu não me importava com o jeito pobre e eu disse
que não. E agradeci a hospitalidade, estava meio tímida e confusa com toda
aquela situação. Não sei de onde tirei aquelas roupas, mas eu estava vestindo
um casaco marrom e aparentemente velho, calças jeans com um rasgo na perna e
uma mancha de sangue na altura do joelho, mas minha perna não estava ferida.
Tinha comigo uma mochila com algumas outras roupas que não sei se são minhas
mesmo, um cordão estranho e outro bolso com alguma outra coisa, mas o zíper
estava emperrado.
Mais
tarde conheci seus filhos, oito garotos e uma menina, a caçula entre todos que,
certamente, tinham que se espremer pra viverem ali. Soube depois por um dos
meninos, que o pai deles havia morrido há dois anos, não se sabe do quê. Dormiu
bem e acordou sem vida ao lado da mãe. Desde então todos ali trabalham pra
ajudar no que falta, até a garotinha mais nova. O mais velho dos garotos era um
rapaz moreno, estava sempre desfilando de peitos nus, e qualquer garota cega
poderia perceber que se tratava de um belo tórax. Apesar da morenice, tinha
olhos verdes e cabelos negros e lisos que lhe caiam à altura da nuca.
–
Josias. – Ele se apresentou timidamente. Os outros eram Mathias, Gustavo,
Geraldo, Luiz, Pablo, Higor, Lucas e Catarina. A senhora que me acolheu se
chamava Carmem. Por não me lembrar do meu nome, passaram a me chamar de Nadja.
O
pessoal do circo me tratava muito bem sempre. Em especial, Josias. Ele era
atirador de facas, trabalhava com isso desde menino. Pra ele, era mais uma
brincadeira que um trabalho. A mãe lia a sorte das madames que passavam por
ali. O circo só tinha espetáculo as sextas, aos sábados e às terças. Josias e
eu conversávamos por horas, às vezes íamos dormir já com o sol nascendo.
Gostávamos de ir pra sala de espelhos, ela não era mais aberta ao público por
haver vários espelhos quebrados, perdíamos horas ali. Cada vez me sentia mais
envolvida por ele. Certa noite ele me chamou pra sala de espelhos. Eu havia
decidido dizer que o queria como algo mais que apenas amigo. Conversamos um
pouco e não tive coragem. Fomos pra barraca em silêncio, eu estava chateada com
meu fracasso e ele não entendia o porquê de eu estar amuada. Todo dia eu sentia
vontade de falar, mas na hora, simplesmente desistia. A verdade é que eu sabia
que ele me via apenas como uma boa amiga.
Era
por volta das cinco e meia da tarde, eu senti uma vontade absurda de vê-lo.
Pedi à Catarina que o chamasse e fui espera-lo na sala de espelhos. Ele chegou
me olhou e disse que eu estava estranha. De Fato eu me sentia estranha. Josias
se aproximou de mim e sem pensar em nada, o beijei. Beijei-o de um jeito
selvagem e logo uma vontade e uma raiva insana tomaram conta de mim. Ele tentou
me empurrar, mas não conseguiu que eu me soltasse dele. Senti uma dor aguda no
peito. O sino da igreja badalou avisando que já eram seis horas. Não sei de
onde saiu a fúria dentro de mim, mas empurrei-o com uma força que também me era
desconhecida, empurrei Josias contra um dos espelhos que se quebrou
imediatamente. Ele caiu meio zonzo. Peguei um dos pedaços do espelho, como que
por reflexo, e cravei no peito dele, rasgando seu tórax. E com minhas próprias
mãos, arranquei seu coração e simplesmente comi. Comi como se há semanas não
comesse mais nada. Ele não teve tempo de ter a menor reação sequer. Seu corpo
jazia no chão, o peito aberto como se uma besta o tivesse atacado. E quando me
olhei no espelho, foi isso o que vi. Minhas mãos pingavam sangue e do mesmo jeito
minha boca, pingavam o sangue do homem que eu acabara de matar de um jeito
horrível. E então olhei meus olhos e senti repulsa e medo pelo que vi. Estavam
negros como a pior noite no inferno e lampejavam um ódio imenso. Nesse instante
me lembrei de tudo. Quem eu era, o cara a quem eu amava dias antes, o quarto
imundo onde ele me manteve prisioneira e... E... E o mais difícil de acreditar.
O meu assassinato! Sim! Ele havia me matado! Mas como era possível eu ainda
estar ali?! Mas não me preocupei muito com isso naquele momento. Lembrei-me de
D. Carmem, de como ela havia sido boa comigo e de como eu acabara de retribuir,
matando o filho dela de um jeito covarde e brutal. Olhei pra o que tinha
acabado de fazer e sai correndo. Fugi o mais rápido que pude. Fui à barraca
onde havia morado nos últimos dias, estava vazia. Naquele horário todos iam
pras avenidas vender seus trabalhos artesanais. Peguei minhas coisas e fugi.
Desci a ladeira da rua, já estava quase completamente escuro da noite que
começava a surgir e não havia ninguém por ali. Entrei na floresta e corri. Não
sabia aonde ir, mas já havia me lembrado de tudo o que tinha acontecido.
Precisava fazer alguma coisa!